O descanso de Deus

Hebreus 4:1-13

Em seguida à ilustração anterior sobre “a disciplina de Deus”, somos advertidos a cuidar caso alguém entre nós tenha falhado em alcançar a promessa do descanso de Deus, pois ela continua em vigor, não tendo sido ainda totalmente cumprida. Ouvimos o Evangelho assim como os israelitas no deserto ouviram as boas novas sobre a terra prometida. Mas somente ouvir não trouxe proveito a eles, nem o trará a nós: é também preciso crer na Palavra de Deus. Todos os que se declaram cristãos devem assegurar-se que não estão falhando em atingir o objetivo de ter fé. Se a sua profissão de fé não for genuína, correm o perigo de se afastar e aderir a algum sistema religioso ou profano que não o pode salvar.

O conceito central deste texto é o descanso de Deus, e se não for compreendido, a interpretação do presente capítulo torna-se um campo minado, carregado de explosivos teológicos escondidos em quase todos os versículos. As interpretações deste conceito têm sido quase tão variadas quanto as passagens de advertência, tanto que a interpretação destas últimas geralmente tem determinado a do próprio conceito. Antes de apresentar os vários pontos de vista, será útil coletar e resumir os fatos sobre o descanso de Deus que podem ser inferidos deste texto:

  1. O substantivo katapausis, "descanso", é empregado em sete versículos (3:11-18; 4:1,3,5,10-11) e o verbo katapauō, “descansar”, em três (4:4,8-10).  Uma terceira palavra a eles relacionada, sabbatismos, "celebração do sábado", é usada uma vez (4:9), sendo esta a sua única aparição no Novo Testamento (reconhecida pela primeira vez na literatura grega antiga). Estas três palavras são empregadas neste livro em relação a um único conceito: o do descanso de Deus.
  2. É o descanso de Deus, porque três vezes neste texto Deus o chama de "Meu descanso" (3:11; 4:3-5). Este é o descanso prototípico de Deus em que Ele tem permanecido desde que cessou o Seu trabalho da criação do mundo (Gênesis 2:2). Esse descanso está disponível e é oferecido aos crentes.
  3. O descanso de Deus foi em parte dado aos israelitas quando entraram na terra prometida; no entanto, compreende muito mais (4:7-8).
  4. O descanso de Deus ainda continua disponível mediante a fé em Cristo, e é algo a ser gozado no presente e em antecipação do futuro (4:1-11).
  5. Essa disponibilidade termina para os que ouvem a pregação do Evangelho de Cristo, mas não creem (4:2), assim como foi negada à geração dos israelitas do Êxodo, por causa da sua incredulidade (Hebreus 3:19). 

Existem quatro interpretações principais para o que se entende por “entrada no descanso de Deus”:

1. O gozo da Terra. É o conceito de katapausis, "descanso", com base na promessa para a geração do Êxodo, representada pela sua entrada em Canaã, onde Israel iria gozar de repouso e segurança contra os seus inimigos (Deuteronômio 12:9-10). Esta interpretação corresponde apenas a uma parte do que se entende por “descanso de Deus”. Josué proporcionou uma parte, e este descanso não se esgotou com ele, mas estava ainda disponível nos tempos de Davi (4:7-8), e ainda está disponível agora, porque nunca foi totalmente cumprida. O propósito deste livro aos Hebreus é incentivar os crentes judeus a entrar na plenitude do descanso. Embora já desfrutando da sua cidadania na terra, ainda não entraram no pleno descanso de Deus.

2. O gozo do céu. A evidência fornecida para esta interpretação é que Hebreus indica que o gozo do descanso é ainda futuro (4:1-11). Alguma evidência adicional é que existe uma associação entre os conceitos de descanso e a experiência do céu, conforme descrito em Apocalipse 14:13. Embora não se possa discordar com a observação quanto ao aspecto futuro de descanso em que se baseia este ponto de vista, esta visão é deficiente porque deixa de incluir o contexto do Antigo Testamento especificamente judaico da passagem.

3. O gozo da vida espiritual, ou "descanso pela fé”. A base para este entendimento é que o descanso de Deus é algo de que nós que cremos atualmente já podemos desfrutar através da fé (eiserchometha é o presente indicativo médio e deve ser entendido como "estamos nos causando a entrar"). O convite do Senhor Jesus para entrarmos em Seu descanso pode ser uma ideia paralela (Mateus 11:28 a 30).

4. O gozo da era messiânica (o reino de Cristo). Este texto fornece várias provas desse gozo:

  1. Tal como na segunda interpretação acima, o "gozo do céu", nos dá a ideia de uma promessa que permanece, e certamente indica a antecipação de um gozo futuro (4:1,11).
  2. O presente do indicativo médio de eiserchometha em (4:3) pode ser entendido como um presente futurista como encontramos em Mateus 17:11, João 14:3 e 1 Coríntios 16:5.
  3. Embora a ideia de descanso não seja limitada ao usufruto da terra, também não deveria ser completamente desassociado dele.
  4. Como o Salmo 95 é frequentemente classificado com um “salmo de entronização”, cujo conteúdo se interpreta como profecia da era messiânica, segue-se que o descanso de Deus também deve ser entendido nesse sentido.
  5. Há uma forte ligação na tradição judaica entre a era do reino messiânico e o conceito da celebração do Sábado (sabbatismos, 4:9). Uma oração de Shabat tradicional de longa data diz, "possa o Todo Misericordioso nos deixar herdar o dia que será inteiramente um sábado e o descanso da vida eterna". Com efeito, o próprio Velho Testamento associa a era messiânica com descanso (Salmo 132:12-14, Isaías 11:10, 14:3, 32:18).

Cada uma destas quatro interpretações são viáveis, mas limitadas. Contudo, se as juntarmos, encontraremos a seguinte definição concisa do que vem a ser o “descanso de Deus”: Para todo ser humano, o descanso prometido por Deus consiste em um estado de paz com Deus e com os homens, na terra e no céu. Corresponde à posição atual do crente em seu relacionamento com Deus e subsequente gozo pelo acesso contínuo à Sua presença e todos os benefícios associados, como recompensa, ajuda, bênção e proteção divina.

Em suma, existem quatro estágios temporais do descanso de Deus:

  1. O aspecto eterno, protótipo, que é de Deus após a cessação dos Seus trabalhos criativos no sétimo dia de descanso (4:4,10). Ele continua a desfrutar o descanso, e serve como a fonte dos três outros aspectos disponíveis do descanso.
  1. O aspecto histórico, que é o descanso associado com o gozo de Israel na terra da promessa (3:11,18,19, também Deuteronômio 3:20, 12:9, 25:19, Josué 11:23, 21:44, 22:4, 23:1).
  1. O aspecto contemporâneo, que é a atual relação de intimidade profunda e constante, e de bênção que está disponível para todos os crentes desfrutarem de um estilo de vida de fé e descanso espiritual.
  1. O aspecto futuro, que é a era messiânica quando nós os crentes participaremos do reinado universal do Messias a partir da terra de Israel (Romanos 5:17, 2 Timóteo 2:12, Apocalipse 5:10, 20:6, 22:5).

Concluímos assim que resta um descanso para o povo de Deus. Este é o descanso eterno, que será gozado por todos os que fomos redimidos pelo precioso sangue de Cristo. É um "sábado" que nunca vai acabar.

Quem entra no descanso de Deus goza de uma cessação de trabalho, assim como Deus fez no sétimo dia depois da criação. Antes de sermos salvos, podemos ter tentado trabalhar para nossa salvação. Quando percebemos que Cristo terminou o trabalho no Calvário, abandonamos nossos próprios esforços inúteis e confiamos no Redentor ressuscitado.

Depois da salvação, assumimos a tarefa de nos dedicarmos ao serviço amoroso por Aquele que nos amou e Se entregou por nós. Nossas boas obras são o fruto do Espírito Santo em nós. Muitas vezes nos gastamos em Seu serviço, embora nunca nos cansemos dele. No descanso eterno de Deus, deixaremos os nossos trabalhos aqui. Isso não significa que estaremos inativos no céu ou na terra por toda a eternidade. Vamos ainda adorar e servi-Lo, mas não haverá nenhuma fadiga, angústia, perseguição ou aflição.

Embora o descanso de Deus ainda esteja disponível, é necessário diligenciar a fim de entrar nele. É preciso empenho para ter certeza de que nossa única esperança é de fato Cristo, o Senhor. Devemos diligentemente resistir a qualquer tentação para meramente professar a fé n’Ele, e em seguida renunciá-lo no calor do sofrimento e perseguição.

Os israelitas adultos que saíram do Egito foram descuidados. Trataram as promessas de Deus com leviandade. Ansiavam pelo Egito, a terra da sua servidão. Não foram diligentes em apropriar-se das promessas de Deus pela fé. Como resultado, nunca chegaram a Canaã. Devíamos ser alertados pelo seu exemplo, pois essa incredulidade nunca deixará de se revelar:

1) É primeiro detectada pela palavra de Deus. A palavra de Deus é:

  • Viva – sempre ativa.
  • Eficaz – produz o resultado pretendido.
  • Cortante – manifesta-se de maneira lancinante.
  • Penetra até a divisão de alma e espírito – para nós não é fácil distinguir entre essas partes imateriais do ser humano.
  • Penetra entre juntas e medulas – são as articulações, permitindo os movimentos para fora, e a medula, escondida, mas vital para os ossos.
  • Discernidora – discrimina e julga no que respeita os pensamentos e intenções do coração. É a palavra que nos julga, nós não a julgamos.

2) A incredulidade é tornada patente também pelo Senhor vivo. Aqui o pronome muda do impessoal para o pessoal. E não há nenhuma criatura escondida da Sua vista. Nada escapa à Sua atenção. Ele é absolutamente onisciente, constantemente ciente de tudo o que está acontecendo no universo. Obviamente, o ponto importante no contexto é que Ele sabe onde não há fé real e onde há apenas um assentimento intelectual aos fatos.

autor: R David Jones.